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3.10.11

Pode?

Um clássico ou um tema social? Hitchcock me agrada, mas Woody Allen sempre tem um lugarzinho especial na minha preferência.
Estou nessa dúvida de cinéfilo quando entra na locadora uma jovem sorridente. Cumprimenta o gerente e vai direto a uma grande estante de fitas videocassete, sem tomar conhecimento da minha presença. A loja está em fase de reorganização e as indicações sobre temas, atores e diretores ainda são precárias.
Olho-a, discretamente. Bonita e confiante, ela cantarola, despreocupa, enquanto vira a cabeça, ora à direita, ora à esquerda, tentando ler os títulos.
Depois de algum tempo ela se dirige a um empregado da loja.
― Oi, moço! Eu queria rever um filme que achei muito bom, mas não consigo localizar. Pode me ajudar?
― E qual é o nome do filme, senhorita?
― Do nome eu não me lembro, mas era um com um ator alto e muito bonito.
― É pouco. Preciso de alguma “pista” mais concreta.
― Pista...pista...Ah, já sei: ele era louro e tinha olhos azuis.
― Humm... Alto, bonito, louro, olhos azuis...Vamos adiante. Diga mais alguma coisa, por exemplo, sobre o tema do filme.
― Ah, o filme era... assim... sobre o amor desse lindão por uma mulher também bonita. Agora me lembro bem: eles se beijavam no final do filme.
― Certo, eles se beijavam no final...A mulher era bonita e eles se beijavam no fim. É pouco, é muito pouco
― Pera aí! Ele torcia por um time de beisebol e ela, eu acho não torcia por time nenhum, mas me lembro que ambos tinham dentes perfeitos.
― Senhorita, vamos fazer o seguinte. Anote aqui nesta folha de papel todas essas informações e eu lhe prometo que vou fazer uma pesquisa profunda em nosso acervo. Entre os trinta e cinco mil títulos que temos, certamente vou localizar esse filme. Tão logo consiga, eu entro em contato. Ah, não esqueça de deixar o número de seu telefone..
― Ei, que papo é esse? Venho aqui querendo encontrar um filme, você não me ajuda em nada e ainda quer o meu telefone? Vá se catar, seu bolha!
E a mocinha saiu pisando duro, batendo com força a porta da locadora.
― Que geniozinho danado! ― arriscou o funcionário dirigindo-se a mim.
Nada respondi. Apenas balancei a cabeça afirmativamente.
Escolhi um filme qualquer, paguei e encaminhei-me, rapidamente para a saída, impressionado com a cena surrealista que presenciara. Ia tão concentrado que acabei trombando com a “mocinha do filme”, tão logo abri a porta.da loja. Ainda tentei desviar-me, mas o esbarrão foi inevitável. Gelei, só em pensar no escândalo que ela poderia fazer, com uma ocorrência comum do dia-a-dia, mas eis que a jovem, toda sorridente, enfiou-me um papelzinho no bolso da camisa e arrematou:
― Pra’quele bolha nunca que eu ia dar o meu telefone, mas que tal você me ligar hoje à noite, depois da novela das oito? Meu nome está no cartãozinho.

Agosto/2004

Conto de Natal II

Papai Noel conferiu, mais uma vez, os brinquedos no fundo do saco com as infindáveis listas que mantinha rigorosamente arrumadas em seu arquivo.
- É, estou ficando velho mesmo. Troquei as lentes dos óculos não faz muito tempo e já não consigo ver objetos de tamanho razoável com a nitidez de antes. Afinal, já tenho tantos anos que até perdi a conta deles e devo durar aí por mais algum tempo, até o dia em que a última criança no mundo deixar de acreditar que eu existo.
Uma teimosa lágrima tentou equilibrar-se nos olhos do velhinho, mas acabou por cair sobre seu braço, dando-lhe na pele uma sensação morna e agradável. Ele a enxugou, assoou o nariz ruidosamente e voltou ao trabalho.
― Minha primeira visita, neste Natal, será a uma instituição de amparo à velhice, na cidade do Rio de Janeiro. Tenho certeza de que indo a esse lugar vou me sentir mais animado. Quem sabe – até – posso vir a me encostar por lá após a aposentadoria?
Chegada a noite de Natal, lá se foi Papai Noel, guiado pelo faro das renas, rumo à cidade do Rio de Janeiro. Era quase meia-noite e ele teve alguma dificuldade para encontrar o endereço, já que a iluminação lá pela zona norte, local assinalado em sua caderneta de anotações como sendo o do asilo, estava em péssimo estado. Acionou os faróis de seu trenó e desceu próximo a um matagal.
― Lugar interessante. Posso perceber que as pessoas continuam gostando de manter uma certa vegetação junto a suas casas.
Estava ajeitando o saco e dando instruções para as renas quando um vulto saiu de dentro do mato e encostou um objeto duro e pontudo nas costas dele.
― Quieto aí, cara. Se vira, devagarinho, senão te furo.
Noel voltou-se bem devagar e viu um menino, aparentando uns sete anos, com uma faca apontada para ele.
― Seguinte, carinha ― disse o menino. Tu vai me dá uma grana e eu vou levar tudo o que tivé no saco que tu traz aí, tu tá me entendendo?
- Estou entendendo, filho, só que eu não tenho dinheiro algum e o que está dentro do saco já tem dono. Quem sabe não tem alguma coisa também pra você? Qual é o seu nome?
― Num tô gostando nem um poco dessas intimidade comigo. Meu tio sempre diz preu num dá papo pra estranho. Tu, com essas roupa vermelha, pra mim é muito bad.
― Você não está me reconhecendo, menino? Qual é o seu nome, afinal?
― Ó, cê tá vestido de Papai Noel. Nessas época o que eu mais vejo nas rua e na televisão é homem vestido de Papai Noel, mas atrás do mato e a essas hora, tá estranho. Meu nome é Messias e eu acho que tu tá a fim de assartá alguém, tirando onda de Papai Noel. Melhor eu levá tu lá pro asilo dos véio e aí tu se exprica pra turma. Andando, meu chapa, senão te furo todo..
E apontou a faca para Noel que, resignadamente, andou na direção indicada pelo menino.
― Você sabe que o seu nome tem um significado muito bonito? ¾ falou Noel enquanto caminhava, tropeçando em latas velhas e garrafas de refrigerantes de plástico.
― Que qui é significado? Tu fala compricado.
― Significado é a mesma coisa de “quer dizer”. O seu nome quer dizer alguma coisa bonita.
― Tá legal, mas vê se anda mais rápido. Tu parece um lesma. Num consegue levantá os pé mais que isso?
― Messias quer dizer “salvador”, aquela pessoa que salva. Jesus Cristo era conhecido por messias porque ele salvava as pessoas. Você já ouviu falar de Jesus Cristo?
― Craro, né velho. Eu vô na igreja nos domingo com minha tia. O meu tio é que não vai não. Ele acha que culto é coisa de “marica”. Foi ele que me deu essa faca. Ele me ensina uma porção de coisa. Já tamo chegando. É naquela casa amarela.
Aproximaram-se da casa indicada pelo menino e puderam ouvir, já à distância, o entoar de vozes do coro religioso. Era no asilo que os moradores do lugar haviam montado uma igreja. Picado nas costas pela faca de Messias Noel entrou. O coro parou e todos se voltaram para ver a cena inusitada.
Noel pôs o saco de brinquedos no chão e, sorrindo, dirigiu-se ao grupo:
― Boa noite, meus caros. Um feliz Natal a todos.
Como resposta recebeu um pesado silêncio e olhares de reprovação. Um velho magro e também de barbas, o chefe religioso, tomou a palavra:
― O que tá ‘contecendo, Messia? Só farta você dizê que esse aí é o seu tio Anacreto, perparando pra aprontá mais uma das sua brincadeira. Desembucha logo, guri, vamo!
Uma roda se fechou em torno de Messias e Noel e o menino começou a falar:
― Seguinte, pastô. Esse aí não é o tio Anacreto. Eu sei lá onde o tio ta! Esse aí eu achei inda ‘gora, lá perto do lixão, trás aquela moita onde os cavalo come e caga todos os dia.
- Ah, então é por isso que eu estou sentindo um cheiro estranho o tempo todo ¾ pensou Noel enquanto baixava os olhos em direção às suas botas e as via adornadas por grossos debruns de esterco eqüino. E eu pensando que as pessoas plantavam aquele capim para conviver com o verde da natureza...
― Se exprique então o senhor, seu moço, quer dizer, ... Num sei como lhe chamá. O que ocê faz vestido de Papai Noel a uma hora dessa, num lugá que num conhece? Se num consegui si expricá vamo tê que chamá a puliça pra prendê ocê como ladrão.
― Eu? Ladrão? Fiquem sabendo que estudei nas melhores escolas da Lapônia e minha família é toda de gente muito honesta. Não estão vendo que sou Papai Noel? Exijo respeito, senão o que as crianças vão pensar de mim?
― Papai Noel, exclamou o velho. Essa é boa. Eu acho que em veis de chamá a puliça nós vamo é chamá uma ambulança e mandá ocê pro hospíço. Vai vê, eles te bota aqui mesmo no asilo. Aqui só tem uma pessoa, que às vez drome aqui e mais ninguém não.
Todos riram, menos Papai Noel que, a essa altura, estava mais vermelho ainda do que de costume.
― Pois bem, amigos. Querem que lhes prove que sou Papai Noel, não é? Eu aceito o desafio.
Noel já se preparava para provar que ele era Papai Noel quando um tiroteio o interrompeu.
― Êpa, gente! ― disse o velho magro de barbas. Vamos se mandá que os home deve tá ‘tacando nóis. Pode sê o pessoá do otro lado do morro. Vamo simbora.
E correram todos, menos Papai Noel. Primeiro, porque seu peso avantajado não lhe permitia correr; depois, porque sua dignidade o impedia de tomar partido de qualquer grupo em disputa, sem conhecer os motivos de cada um.
Pouco tempo depois, três soldados da polícia entraram no asilo e vendo aquela estranha figura, gorda e vestida de vermelho, com gorro e todos os paramentos de Papai Noel, simplesmente partiram para cima dele, derrubando-o e após passar-lhe uma gravata, prenderam algemas em seus pulsos.
― Leva esse Papai Noel de araque, soldado ― falou um dos policiais, cheio de divisas no braço da farda. O delegado vai se distrair com ele.
E lá se foi Papai Noel, aos trancos, empurrado pra dentro de um camburão, sem poder articular uma única palavra em sua defesa.
Chegando à delegacia ficou de pé numa salinha estreita, na companhia de homens e mulheres, todos de aparência humilde mas que, embora também estivessem na mesma condição de detidos, não puderam deixar de rir quando viram entrar aquele homem gordo vestido de Papai Noel.
― Que diacho, cara ― disse um deles. Tu não vê que com essa roupa a polícia ia logo te encaná? Tu parece que bebe!
Ouviu-se um berro vindo lá de dentro:
― Vamos parar com gracinhas, senão a coisa vai ficar ainda mais preta para todos.
Fez-se silêncio geral. Agora os detidos só olhavam para a figura meio ridícula de um homem velho e gordo, vestido de vermelho, com a roupa toda retorcida e um barrete enterrado quase até os olhos, resultado dos sacolejões durante o “transporte” no camburão.
Noel começou a pensar no que deveria fazer. Ele tinha poderes para se livrar dessa encrenca, com certa rapidez. Afinal, quem carrega num saco relativamente pequeno todos os presentes pedidos pelas crianças do mundo, não ia se atrapalhar na hora de sair de um pequeno episódio como aquele. A única coisa que o impedia de uma ação imediata era a preocupação com aquela gente que ele vira no asilo, principalmente com o menino Messias.
― Sargento, faça entrar o Papai Noel, ouviu-se a voz do delegado do fundo de sua sala.
― Perfeitamente, Doutor. Vamos lá, Papai Noel.
Desta vez todos riram, inclusive o Doutor Delegado.
Ao entrar, Noel deparou-se com uma figura quase tão gorda quanto a dele, de terno e gravata, que lhe indicou uma cadeira diante de sua mesa.
― Com que então o senhor é o Papai Noel?
― Sim, Doutor Delegado.
― Sendo assim, queira apresentar sua carteira de trabalho, por gentileza.
― Eu não tenho carteira profissional porque não moro neste país e na Lapônia ninguém precisa de carteira de trabalho, mas qualquer criança é capaz de me identificar.
― Interessante, muito interessante. Sargento, traga aquele menino que ficou na sua sala, aguardando a chegada do Juizado de Menores.
― É pra já, Doutor.
O sargento saiu e retornou quase em seguida, trazendo à sua frente, um menino aparentando uns oito anos.
Quando Noel viu quem era, ficou preocupado.
― Como é mesmo o seu nome, menino? ― perguntou o delegado.
― Messias, Dotô, mas eu não fiz nada de errado. A gente só tava no asilo batendo um papo com...
Naquele instante Messias viu o Papai Noel sentado à frente do delegado e concluiu:
― Era esse o cara que queria que nóis acreditasse que é Papai Noel.
― E você, Messias, acredita que ele seja Papai Noel? ― perguntou o delegado, cheio de ironia na voz.
― Que qué isso, Dotô. O meu tio me ensinou que essa história de Papai Noel é coisa de marica. Tô fora, tô fora.
― Acho que a sua situação se complicou, Papai Noel. Esse menino não acredita no senhor. E agora, como ficamos?
Noel estava desconcertado. Aquele menino estava fora dos padrões culturais que ele sempre julgara imutáveis para todo o sempre. Antes que pudesse esboçar qualquer resposta, ouviu do delegado:
― Não tem carteira de trabalho. Certamente conhece alguém que possa se responsabilizar pelo senhor?
― Já lhe disse que não nasci e nem moro aqui, logo, não conheço ninguém.
― Afinal, onde foi que o senhor nasceu mesmo? Talvez o Consulado do seu país possa se responsabilizar pelo senhor.
― Nasci na Lapônia e não creio que haja no mundo qualquer representação diplomática desse lugar, pois somente eu, Mamãe Noel e os duendes que nos ajudam moramos lá ¾ disse Noel.
― Então, meu caro, só me resta enquadrá-lo nas penas da lei por vadiagem. O senhor ficará detido para verificarmos se tem antecedentes criminais ou qualquer tipo de dívida com a justiça. Sargento, tire as digitais e pode levar o Papai Noel, mas deixe-o numa cela sozinho. Afinal, ele está velho e seria desumano misturá-lo com gente que entra e sai daqui a toda hora. Além do mais algum deles poderia roubar os presentes do saco mágico.
Papai Noel foi trancafiado numa cela e, cansado como estava, logo dormiu.
Teve um sonho em que tudo que lhe estava acontecendo não passava de um mero exercício da sua imaginação e, ao acordar, esboçou um sorriso, que se esmaeceu quando viu à sua frente uma figura engravatada e suarenta .
― Bom dia, Papai Noel. Meu nome é Dermevino e eu sou seu adevogado. O meu amigo delegado me ligou e pediu pra mim vir aqui falar com o senhor.
- Maravilha, pensou Papai Noel. Eu, aqui nessa cela de delegacia e me arranjam um “adevogado”. Vou sair daqui agora, por meus próprios meios.
― Papai Noel. Conte-me como foi que tudo começou. Não me esconda nada. Pra começar, onde arranjou essa roupa horrorosa? Roubou ou furtou? Como o senhor sabe, furto e roubo não são a mesma coisa no direito.
Noel levantou-se, tranquilamente, meteu a mão dentro do saco e tirou de lá uma chave de fenda, acessório de uma das bicicletas que ele deveria ter entregue na noite anterior. Abaixou-se, introduziu a chave na fechadura e, com leve torção, abriu o trinco da pesada porta.
― Uau, cara! Você é dos bons! Desse jeito vou ter de cobrar mais caro pelos meus serviços ― admirou-se o causídico.
Noel passou pela porta e fechou-a, imediatamente, deixando preso o doutor adevogado.
― Ei, que história é essa? Sou amigo do delegado. Você, além de ficar sem adevogado, ainda vai levar muito cacete por essa ousadia. ― berrava possesso o Dr. Dermevino.
- Fique bem quietinho que eu vou ter uma conversa com o doutor Delegado para esclarecer as coisas e depois ele solta Vossa Excelência, Doutor..
Papai Noel caminhou em direção à sala do delegado e foi logo empurrando a porta.
O delegado tomou um susto.
― O que está acontecendo? Não sei como conseguiu fugir, Papai Noel, mas vai voltar debaixo de couro ― ameaçou o delegado.
Noel encarou-o com tal decisão que o delegado baixou a voz e disse:
― Onde está o doutor Dermevino? Se você não está armado, por que não fugiu? O que veio fazer na minha sala?
― O doutor Dermevino está descansando lá na cela. Quando terminarmos nossa conversa o senhor faça o favor de mandar soltá-lo. Podemos começar?
― Ou o senhor é louco ou um grande artista. Sente-se e fale ― apontou o delegado para a cadeira em frente à sua, ainda em tom de ordem.
― Obrigado, Doutor Delegado. Eu tenho certeza que o senhor me considera mais um louco do que um bandido, mas vamos esclarecer as coisas. Para demonstrar que realmente sou o Papai Noel preciso que o senhor, por instantes, se transporte à sua infância, quando certamente acreditava em mim. Pode tentar isso, por alguns segundos? Basta fechar os olhos e se imaginar com seus sete anos de idade. Pode deixar que não é nenhuma armação da minha parte. Afinal, como o senhor mesmo disse, se eu quisesse, já teria fugido há bastante tempo.
Mais descrente do que temeroso, o delegado resolveu fazer o que Noel lhe pedia. Fechou os olhos e procurou voltar aos seus sete anos, numa noite de Natal.
― O que você está vendo, meu menino ― perguntou Noel?
― Uma sala pequena, enfeitada com umas poucas bolas e tendo a um canto uma arvorezinha de Natal, com poucos presentes debaixo dela. Meus pais estão na minha frente, procurando me consolar porque não puderam me dar a bicicleta que eu pedi e me esforcei por ganhar e eu estou muito triste. Eles eram pobres e gastaram o que tinham em pequenos presentes para todos, além da ceia que, realmente, estava muito gostosa. Lembro ainda que dei um beijo em cada um e fui para o meu quarto, onde chorei por não ter conseguido a bicicleta. Dormi e sonhei que Papai Noel vinha conversar comigo e me prometia dar a bicicleta algum dia, só que não podia precisar quando.
De repente, o delegado abriu os olhos e ficou, por instantes, sem entender o que se passava: Papai Noel havia ido embora e, diante dele, reluzia uma bicicleta de criança, novinha em folha, com um bilhete colado nela:
“Eu não me esqueci daquele nosso encontro. Assim que entrei na sua sala, sabia que era a hora de cumprir com a minha palavra. Aí está a sua bicicleta. Dê de presente a alguém que você considere digno dela. Acredita em mim agora?”
O delegado leu o bilhete, guardou-o no bolso do paletó, sentou-se, cruzou calmamente as pernas sobre a mesa, ficou admirando o seu presente de criança e concluiu:
-Velhinho danado. E ainda tem gente que não acredita que ele exista!
E gritando lá para dentro:
― Sargento, tire o doutor Dermevino da cela e traga esse menino, o Messias, até a minha sala, porque eu tenho uma surpresa para ele.

Ó Deus!

Subo, flutuando lentamente, e aproveito para prestar atenção a tudo que me vai em volta. À minha esquerda, o Pão-de-açúcar, sem qualquer vestígio de bondinho ou estação. Tudo ao natural, somente árvores em volta. Que sensação estranha. À direita, o Corcovado, mas, onde está o Cristo? Nem sinal dele e muito menos dos bares, escadarias e escadas rolantes que cada vez mais isolam a estátua. Continuo a subir e dou por falta dos barracos da Rocinha e do Vidigal. Tudo coberto de densa vegetação. Do alto vejo a curvatura de Copacabana, sem qualquer edifício construído, tudo rigorosamente selvagem.
Uma olhada para os lados da Tijuca e revejo a magnífica casa de fazenda, estilo colonial, plantada no alto do morro do Turano, sem favela alguma e muito menos faculdade por perto..
Céus, alguma coisa de grave ocorreu com o meu Rio de Janeiro! O silêncio é total. Nenhum carro pelas ruas, se é que vielas de barro podem ser chamadas de ruas, pois é o que vejo por todo lado. Poças de lama enormes cobrem o espaço que antes era margeado por avenidas litorâneas e só reconheço que aquele lugar é a praia de Ipanema porque ao fundo aparece o morro Dois Irmãos. Uma rajada de vento me empurra para os lados da zona norte e eu percebo que o Maracanã desapareceu do mapa. O maior estádio do mundo não existe. A seu lado está uma linda colina que eu acabo por identificar como sendo a Mangueira, sem qualquer barracão de zinco. Onde estão as linhas de trens da Central do Brasil (eu acho que o nome já mudou!)? Cadê a Presidente Vargas? Onde foi parar a igreja da Candelária? Uma vasta planície me faz desconfiar que estou passando pela outrora Avenida Brasil e nem vejo sinal das Linhas Amarela e Vermelha. O fundo da baía de Guanabara é límpido e quanto à favela da Maré ― nem pensar. Em seu lugar um imenso espelho d’água com peixes saltando a toda hora. E a Universidade Federal do Rio de Janeiro ou Fundão, como é mais conhecida? Nada. Tudo água transparente. Contam que D. João, ao chegar ao Brasil, costumava tomar banhos de mar por essas bandas.
Já estou começando a gostar do que vejo quando me sinto puxado fortemente, rumo às alturas. O deslocamento é tão rápido que quase perco o fôlego.
No momento seguinte estou em um lugar todo branco, em frente a uma cadeira alta, onde uma figura sem rosto aguarda minha aproximação. Dirijo-me a ela e pergunto:
― Onde estou?
Não há resposta.
― E quem é o senhor? ― insisto.
― Você não devia perguntar tanto. Seria melhor esperar que eu lhe dissesse o que acontece, pois pouparia seu fôlego.
― Obrigado. Estou aguardando as explicações, então.
― Ótimo. Vamos lá. Onde acha que está?
― Não faço a menor idéia. Só sei que, pelo caminho, encontrei a cidade onde nasci completamente modificada.
Tive vontade de perguntar o que havia acontecido, mas me lembrei das palavras iniciais do homem e me contive.
― Vamos direto ao assunto. Você acaba de morrer e está realizando aquele velho sonho de ver sua cidade no tempo em que a violência e os maus costumes ainda não haviam invadido tudo.
Engulo em seco e me apalpo, discretamente, para ter certeza de que não estou morto. Sinto até um certo incômodo com o beliscão que me dou na barriga, aproveitando que estou com os braços cruzados.
― Se doeu é porque estou vivo ― penso comigo mesmo.
― Olhe, meu caro, é melhor que eu lhe diga que qualquer pensamento que você tenha eu capto imediatamente. Você ainda tem uma certa sensibilidade corpórea porque acaba de morrer, razão pela qual sentiu o beliscão, mas logo tudo isso vai cessar.
― Escute aqui, seu adivinho. Cansei dessa história de que estou morto e não posso fazer perguntas. É melhor me dizer onde estou e quem você é, senão vou me mandar, certo?
O homem nada respondeu e continuou a me fitar.
Tento dar-lhe as costas e partir, mas não consigo sair do lugar.
― Tá bem, cara. Você está me gozando e eu sei que tudo não passa de um sonho. Vou ter toda paciência com as suas adivinhações e “poderes”, pois, daqui a mais um pouco eu acordo e vou acabar rindo quando me lembrar de você dizendo que eu estava morto.
― Ah, é? E quanto tempo você acha que vai durar o seu “sonho” ?
― O tempo, nos sonhos, não pode ser medido. Um segundo real pode equivaler a um ano nos sonhos. Agora te peguei.
― Já que é tão esperto, que tal esperar, digamos, um século para “acordar”?
― Viu? Já está admitindo um fim para o meu sonho. Eu vou esperar que ele acabe. Pode durar alguns séculos, mas sei que não passará de alguns minutos no mundo real.
― Como você vai ficar aqui alguns “séculos”, que tal se conversássemos um pouco sobre a sua vida?
― Não vejo mal nenhum nisso. Quando acordar posso até seguir alguns de seus conselhos, seu “sei-lá-quem”.
― Para você não ficar me tratando desrespeitosamente, pode me chamar de Deus.
― Que privilégio! Deus aparecendo para mim em sonho”! Posso tomar sua bênção?
― Nem vou responder. Quando você se convencer de que está morto, quero ver se não vai me tratar com o devido respeito...
― Fica zangadinho não, Deus. Vamos bater um papinho animado, enquanto meu corpo não começa a cheirar mal.
― Por aqui os corpos não têm cheiro. Não são sequer corpos. Você está na categoria de espírito puro, mas, com essa arrogância toda eu diria que tem muito ainda a evoluir. É o que vocês lá na terra costumam chamar de “espírito- de porco”.
― Cada vez mais me convenço, Deus, que você não tem nada a ver com Deus. É, no máximo, um gozador. Vamos lá, faça um milagre dos grandes. Torne os homens todos iguais.
― Você já ouviu falar em “livre arbítrio”, ó insolente mortal?
― Ó Deus, me poupe! Toda vez que é preciso justificar as incoerências religiosas lá vem essa história de “livre arbítrio”. O homem acaba sendo responsável por suas ações através de concessão divina. O que pensar dos pobres africanos, explorados pelos homens brancos há séculos? Como você permite uma coisa dessas, ó Deus ?
― Olhe, já estou me cansando da sua arrogância e ignorância bíblica. Assim sendo, vamos encerrar essa nossa conversa. Você tem razão. É tudo um sonho ou pesadelo e a hora de mudar a paisagem chegou.
O homem recuou alguns passos e bateu palmas fortemente. Na mesma hora senti uma corrente de ar me arrastar fortemente para baixo. Minha cabeça rodava e eu acabei por perder a noção de espaço e tempo.
Despertei num lugar quente e inóspito. Nada que se parecesse com tudo que eu conhecia Caminhei alguns passos até perceber que muitos vultos vinham na minha direção. Ao chegarem bem próximo pude identificar vários de meus conhecidos e parentes, já falecidos, que me lançam olhares suplicantes e horrorizados, desaparecendo em seguida.
― Droga. Esse sonho não acaba mais. Onde foi se meter o tal de Deus ?
― Ele não vai mais falar com você, insolente mortal. Mandou-o para mim até que você se convença de que morreu e pague o preço de sua incredulidade e arrogância ― disse uma voz estridente atrás de mim.
― E quem é você? Onde estou?
Uma risada medonha me fez virar na sua direção e, nesse exato momento, pude ver e sentir uma ponta vermelha de cauda, batendo de leve na minha perna.
― Adivinhe, meu novo pupilo, adivinhe onde você está e quem sou eu?
Belisquei-me novamente, por diversas vezes, mas desta vez nada senti.

Pesadelo?

De repente, desperto sobressaltado. Barulhos ensurdecedores por toda parte me deixam aterrorizado. Abro os olhos, devagar, e examino em volta. Percebo ruínas e cheiro desagradável, que não consigo identificar. Clarões iluminam os céus. A poeira toma conta de tudo, e eu me sinto sufocar. Onde estou? Como vim parar aqui? Ninguém por perto para responder às minhas perguntas aflitas. Começo a caminhar e caio. O chão está todo esburacado e ouço gemidos. Vou ao encontro deles. Vêm de baixo. Levanto umas tábuas com esforço e consigo localizar de onde vêm os sons. Esgueiro-me entre alguns pedaços de parede, ainda de pé, e encontro um pequeno vulto . Está enrolado em uma esfarrapada manta. Os gemidos aumentam e eu tomo aquele corpo, que se prende ao meu pescoço e me crava as unhas, em desespero, mas que logo se entrega quando o aperto contra o peito. Temos de sair dali, porque tudo range em volta, ameaçando desabar. Corro e tropeço, a cada instante, mas continuo agarrado àquele corpo que já não reage.
Novas explosões me fazem pensar que agora será nosso fim, mas elas cessam e eu vejo luzes que vêm em minha direção. Percebo homens berrando ordens, mas não entendo o que dizem. Eles estão tentando apagar um fogaréu que vejo à minha frente. Minha mente se ilumina como o clarão que quase me cega! Será que estou numa das torres do World Trade Center? Será que sou testemunha viva da imensa tragédia que se abateu sobre as inocentes vítimas do centro comercial norte-americano? Percebo, agora, que o cheiro estranho que antes senti era uma mistura de carne humana carbonizada junto com madeira e óleo queimado.
- Meu Deus, o que esses terroristas fazem com seus semelhantes! Que gente é essa, sem entranhas, que atinge a todos, indiscriminadamente, por uma causa que eles tentam impor ao mundo como justa?
Agarrado ao corpo, quero chegar logo junto a alguém, para expressar minha indignação e horror; quero berrar o meu protesto contra o terrorismo que arrasa o que encontra pela frente, implacavelmente.
Aquela criança no meu colo é a prova de que necessito para me engajar na luta contra esses odiosos destruidores da vida alheia. Livro-me dos últimos escombros e corro na direção do vultos mais próximo. Ele me ilumina o rosto, e vai ao meu encontro, esticando os braços para recolher o pequeno corpo enrolado na manta. Outras pessoas vêm até nós, com tochas e lanternas e aí vejo que os homens têm turbantes e as mulheres, véus. Olho para trás e, em lugar dos escombros do World Trade Center, vejo os restos de uma modesta casa, bombardeada há pouco por um poderoso míssil, numa rua empoeirada de Cabul.

Rio, 12/12/2001.

O mar

Acordo na madrugada e não mais consigo dormir. Enrolo-me nas cobertas, embora faça calor, e me encolho todo. Agora, além de insone estou encharcado de suor. Em desespero tento o velho truque da concentração em uma palavra, que vou repetindo, compassadamente, à exaustão. Também não dá certo e, dali a pouco estou detestando aquela pousada, de tão agradáveis lembranças e associações. Reza? Nem pensar. Criado no catolicismo, sabia todas de cor mas, a partir da adolescência contestadora, fui esquecendo um pedaço desta, aquela por inteiro e, ao cabo de poucos anos, nem Ave-Maria me era possível levar até o fim.
De repente, no silêncio da noite, um ruído, ao longe, me chega aos ouvidos. Levanto-me e saio em direção ao som que me atrai. Desço uma rua longa, com luzes brilhando nas pedras irregulares do calçamento e já agora percebo que, à medida que me aproximo do fim da viela, o ruído se transforma em estrondo forte. Ao contornar uma curva, deparo-me com o mar que, de ressaca, atira-se implacável contra a encolhida areia da praia. Aproximo-me, até quase ser tocado pelas águas e aí me sento para apreciar o espetáculo. O verde escuro, batido pela fraca iluminação da rua, assume variedades de tons que se misturam às franjas brancas de espuma, tecendo verdadeiras rendas nas cristas das ondas. Intermináveis túneis vão se cavando, logo abaixo do topo das vagas e percorrem toda a extensão da praia, lançando-se sobre ela, formando grandes valas que logo se transformam em extensas e rasas piscinas. A água banha meus pés. Sua temperatura é morna e acolhedora. O vai-e-vem das ondas é contínuo e o barulho começa a me embalar. Deito-me e deixo-me envolver. Tenho visões ciclópicas. Sinto-me, sultão, cavaleiro andante, selvagem de perdidas ilhas do Pacífico. Sou rei de uma terra onde as injustiças não existem e onde a palavra violência sequer consta dos dicionários. Derroto dragões e ofereço minhas vitórias à amada. Velejo tranqüilas lagoas, em barco todo branco, que comando, qual velho e experiente marinheiro ou então me espreguiço ao sol morno e maravilhoso, preparando-me para inebriantes mergulhos. Sou Netuno, comandando com meu poderoso tridente, os humores do mar e a vida de seus habitantes. Estou em transe e dele apenas saio quando a água já me cobre os ouvidos. Quero assim continuar, mas a maré me puxa, com doçura, para o mar. Levanto-me, totalmente anestesiado. Penso ainda ver cavalos-marinhos circulando a minha volta, mas percebo que a euforia vai dando lugar à realidade.
A distância de volta ao quarto agora me parece mínima. É como se eu flutuasse. Subo as pequenas escadas, vagarosamente, empurro a porta, atiro-me sobre a cama e, antes que possa avaliar o que comigo se passou, mergulho no mais profundo, acolhedor e paradisíaco de quantos sonos já pude desfrutar em toda a minha vida.